ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, EFEITO SUSPENSIVO E A REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Guilherme de Almeira Bossle
Especialista em Direito e Processo do Trabalho
Professor de Direito Processual Civil da UNISUL
Advogado

 

                        Com a recente reforma do Código de Processo Civil (Leis 10.356, de 26.12.2001 e 10.358, de 27.12.2001), introduziu-se, dentre as exceções à regra geral do duplo efeito (devolutivo e suspensivo) em que a apelação cível é recebida (art. 520, caput, primeira parte, do CPC), a hipótese de sentença que confirma a antecipação dos efeitos da tutela, anteriormente concedida pelo próprio juiz ou em decisão de agravo de instrumento (inciso VII do art. 520 do CPC, acrescido pela Lei nº. 10.352, de 26.12.2001 e inciso II do art. 527 do CPC, com a redação dada pela mesma lei).

                        A questão relativa aos efeitos em que a apelação será recebida, quando haja decisão interlocutória que, de algum modo, antecipe os efeitos da decisão de mérito, há muito é debatida pelos processualistas. Na liminar concedida em mandado de segurança (art. 7º, II, da Lei n°. 1.533, de 13.12.1951), a qual antecipa os efeitos mandamentais da decisão que concede a ordem pleiteada, debatia-se acerca da subsistência da liminar, em havendo denegação da ordem pelo juízo monocrático.

                        Hely Lopes Meirelles afirmava que a liminar somente perdia o seu efeito quando expressamente revogada na sentença, mesmo que esta denegasse a segurança. Sustentava que “enquanto pende o recurso, a sentença denegatória é reformável e, como tal, nenhum efeito produz em relação à suspensão provisória do ato” (1983, p. 95).

                        No mesmo sentido, Ovídio Baptista argumenta que, se a liminar fora concedida porque sua denegação poderia tornar ineficaz a futura sentença de procedência, “não se imagina como possa o juiz de primeiro grau revogá-la e, por esse meio, tornar inútil o provimento do recurso” (2000b, p. 404).

                        A Súmula 405 do STF, todavia, expressa o entendimento predominante: “Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo, dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária”. Do teor da súmula, conclui-se que, concedida a segurança, a liminar, no caso antecipatória, subsiste, não obstante o reexame necessário a que estará sujeita a sentença (art. 475 do CPC). Antes do advento do instituto da antecipação de tutela, Lei 8.952, de 13.12.1994, por uma incorreta compreensão da natureza das medidas satisfativas, entendia-se que a liminar em mandado de segurança era uma “providência cautelar, de preservação do direito invocado pelo impetrante” (MEIRELLES, 1983, p. 50).

                        Com a introdução, no ordenamento jurídico-processual, do instituto da antecipação de tutela (Lei 8.952/94), reacendeu-se a discussão acerca dos efeitos da apelação, quando interposta de sentença que confirma liminar concedida em decisão interlocutória. O art. 273 do CPC, que traz a disciplina da tutela antecipatória, não deixa dúvidas de que sua concessão permite ao autor a execução provisória da decisão (§ 3º do art. 273 e art. 588, II e III, ambos do CPC).  Dessa forma, seria um contra-senso imaginar que eventual apelação da sentença que confirmasse a antecipação de tutela tivesse o condão de suspender a execução iniciada com a decisão interlocutória.

                        João Batista Lopes entendia que, apesar de não haver menção expressa, o instituto da tutela antecipada permite superar o óbice do art. 520 do CPC (2001, p. 122). Da mesma forma, Teori Albino Zavascki afirmava que “confirmada pela sentença de procedência do pedido relativo a tutela já antecipada provisoriamente, o eventual recurso de apelação não poderá ter efeito suspensivo, porque isso é absolutamente incompatível com o sistema agora adotado. Em outras palavras, o art. 520 do Código de Processo Civil contem, por forca do sistema, um inciso implícito, que bem poderia ter a seguinte redação: ‘…será (…) recebida só no efeito devolutivo (apelação) quando interposta de sentença que: … VI – julgar procedente o pedido de tutela já antecipada no processo’” (1997, p. 79-80).

                        A reforma do CPC veio, tão-somente, consagrar o que a doutrina há muito entendia, que a antecipação de tutela, sendo confirmada pelo juiz que a concedeu, ou concedida pelo Tribunal em recurso de agravo, retira da apelação o efeito suspensivo que lhe é próprio, mantendo-se a execução provisória da sentença, mesmo havendo apelação da sentença definitiva.

                        Em relação ao réu, que sofrerá os efeitos da execução iniciada com a concessão da tutela antecipatória, há dois momentos em que poderá suspendê-la.

                        O primeiro deles se dá mediante a interposição do recurso de agravo, na modalidade instrumental, logo após a concessão da tutela antecipada.

                        O § 4º do art. 523 do CPC, com redação dada pela Lei 10.352/2001, permite que se interponha agravo de instrumento nos casos de decisão interlocutória que provoque “dano de difícil e de incerta reparação”.

                        Assim, perfeitamente cabível o agravo de instrumento das decisões que concedam a antecipação de tutela.

                        O segundo momento ocorre quando o juiz, após ter confirmado a antecipação de tutela na sentença, processa a apelação somente no efeito devolutivo.

                        Permite-se ao réu interpor agravo de instrumento (parte final do § 4º do art. 523 do CPC), a fim de obter a suspensão do cumprimento da decisão até o pronunciamento definitivo da turma ou câmara, desde que relevante a fundamentação e da execução provisória da sentença possa lhe resultar lesão grave e de difícil reparação (art. 558, caput, e parágrafo único, c/c inciso VII do art. 520, do CPC).

                        Embora ambos os agravos, quando interpostos, tenham o mesmo objeto – suspensão da execução provisória decorrente de antecipação de tutela –, seus requisitos são diversos.

                        Caso fossem os mesmos, não se poderia conhecer do agravo de instrumento pleiteando efeito suspensivo à apelação, quando já houvesse sido julgado improcedente agravo visando a reformar a decisão interlocutória que concedera a tutela antecipada.

                        O § 4º do art. 523 do CPC, apesar de falar em “casos de dano de difícil e de incerta reparação”, não traduz corretamente os requisitos exigidos ao agravante quando pretenda cassar a decisão que concede a tutela antecipada.

                        Esta, conforme dispõe o art. 273, I e II, do CPC, exige, para sua concessão, além da prova inequívoca do direito postulado, ou seja, verossimilhança da alegação, que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou fique caracterizado o abuso de direito ou o manifesto propósito protelatório do réu.

                        Salvo na última hipótese, esses requisitos podem ser traduzidos, em sentido amplo, no fumus boni juris e no periculum in mora.

                        Cabe, portanto, ao autor da ação comprovar os requisitos para a antecipação de tutela.

                        Em não agindo o réu na hipótese prevista no inciso II do art. 273 do CPC, não se concebe seja concedida a antecipação de tutela quando não haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação ao autor.

                        Mesmo que os efeitos da antecipação de tutela não causem dano algum ao réu, é vedada a concessão da tutela antecipada quando, da mesma forma, não haja receio de dano irreparável ao autor.

                        Concedida a antecipação de tutela, presume-se que seus requisitos foram preenchidos. Em não se conformando o réu, cabe-lhe, pois, o recurso do agravo.

                        Ocorre que a exigência do § 4º do art. 523 do CPC – comprovação do dano de difícil e de incerta reparação – não pode ser colocada como óbice ao seu provimento.

                        Para reformar a decisão interlocutória, deve o agravante, num primeiro momento, demonstrar que os requisitos do art. 273 do CPC não foram cumpridos.

                        Não necessita, pois, comprovar que a antecipação de tutela lhe causará algum dano irreparável.

                        Após isso, caso, realmente, a instauração da execução provisória cause ao agravante algum dano irreparável, é que poderá o Tribunal, com base nisso, cassar a antecipação de tutela, ainda que seus requisitos estejam preenchidos.

                        Serão sopesados os bens jurídicos em conflito, devendo, evidentemente, prevalecer o que, no caso concreto, for mais relevante. Sobre o tema, conferir em “Antecipação de tutela no processo civil e a colisão dos direitos fundamentais da efetividade do processo e da segurança jurídica”, monografia publicada na página do CEJUR, no site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (www.tj.sc.gov.br).

                        Destarte, somente quando estiverem presentes os requisitos do art. 273 do CPC – caso contrário, bastará ao agravante demonstrar que os mesmos não foram atendidos -, é que se exigirá do réu, ao agravar da decisão interlocutória, a comprovação de que os efeitos da antecipação de tutela lhe causarão danos mais graves do que a mora processual ao autor da ação.

                        Nesse segundo caso, é de relevante importância compreender que, enquanto o autor pleiteia a execução provisória, isto é, a antecipação de tutela, com fundamento no periculum in mora, o réu requer a suspensão da execução com fundamento no perigo de dano irreparável, já que a mora processual prejudica o autor da ação, e não o réu.

                        Essa idéia fica mais clara quando se concebe o periculum in mora como um requisito próprio da antecipação de tutela e o perigo de dano irreparável como pressuposto das medidas cautelares.

                        Nesse sentido, OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA salienta que o “direito medieval que nos legou o conceito de periculum in mora jamais o empregou como sinônimo de tutela de segurança (cautelar), mas, ao contrário, sempre o reservou para os casos de execução provisória, valendo-se do conceito de dano irreparável quando a hipótese correspondesse à tutela cautelar” (2000b, p. 56).

                        Conclui-se, assim, que o réu, ao interpor agravo na forma do § 4º do art. 523 do CPC, requerendo a suspensão da execução provisória iniciada com a concessão de antecipação de tutela, não necessita demonstrar que a medida está a lhe provocar dano de difícil ou incerta reparação, salvo se estiverem presentes os requisitos da tutela antecipatória.

                        Já no caso do agravo de instrumento interposto da decisão que, ao confirmar a antecipação de tutela, recebe a apelação apenas no efeito devolutivo, a situação é diversa.

                        O respectivo recurso é fundado no § 4º, in fine, do art. 523 do CPC, que permite o agravo de instrumento nas decisões relativas aos efeitos em que a apelação é recebida.

                        Tal dispositivo deve ser conciliado com o art. 558, caput, e parágrafo único do CPC, que autoriza a suspensão da execução da sentença nas hipóteses do art. 520 do CPC, exigindo que o agravante, mediante relevante fundamentação, demonstre que o cumprimento da decisão possa resultar lesão grave e de difícil reparação.

                        Nesse caso, caberá ao agravante demonstrar a existência de perigo de dano irreparável, e não apenas que o autor da ação não cumpriu as exigências do art. 273 do CPC.

                        Nesse segundo momento, em que se permite a suspensão da execução que se iniciou com a antecipação de tutela, não mais se admite que o agravante ataque a decisão interlocutória do juiz a quo, pois, ou o momento já preclui (prazo para interposição do agravo), ou este, ainda que interposto, fora julgado improcedente.

                        Assim, deverá buscar a suspensão da execução com fundamentos diversos dos eventualmente expostos naquela ocasião.

                        Em ambos os casos, todavia, o recebimento da apelação apenas no efeito devolutivo decorre da decisão interlocutória, e não da sentença.

                        Por isso mesmo, o inciso VII do art. 520 do CPC exige que a mesma seja confirmada na sentença, pois esta, por si só, não permite que a apelação seja recebida somente no efeito devolutivo, mas apenas quando confirme antecipação de tutela.

                        Diferentemente dos demais casos, a decisão interlocutória que concede a antecipação de tutela não é substituída pela decisão de mérito. Seus efeitos permanecem até que seja cassada pela instância superior.

                        Isto se torna evidente quando a antecipação de tutela, confirmada na sentença, ingressa nas exceções à regra geral de suspensão da execução em havendo apelação.

                        Sendo cassada antes da prolação da decisão definitiva, mesmo que esta julgue procedente o pedido do autor, a apelação será recebida no duplo efeito.

                        Com esta premissa, torna-se mais claro diferenciar os fundamentos do julgamento do agravo interposto logo após a decisão interlocutória de antecipação de tutela e do agravo que pretenda suspender a execução, em caso de apelação contra decisão que confirme a antecipação de tutela.

                        Na hipótese do primeiro agravo, caso a sentença que confirme a antecipação de tutela sobrevenha antes de seu julgamento, é equivocada a idéia de que estaria o mesmo prejudicado.

                        A posição assumida pela jurisprudência, no entanto, é majoritária no sentido de que, julgada procedente a ação na qual foi concedida a antecipação de tutela, o agravo de instrumento que visava à atacá-la resta prejudicado.

                        O Tribunal Regional Federal da 4ª Região assim se manifesta: “Fica prejudicado o julgamento do agravo de instrumento interposto contra tutela antecipatória se já proferida sentença no processo principal” (Agravo de instrumento n. 95.04.62592-4/PR. 2ª Turma. Data da decisão: 21/03/1996. Fonte DJ data: 02.05.1996 p. 28025, Relatora: Juíza Tânia Terezinha Cardoso Escobar. Decisão unânime).

                        Embora se admita que a regra geral é a da perda do objeto do agravo contra decisão interlocutória confirmada em sentença, devendo os prejuízos serem manifestados na apelação, no caso da antecipação de tutela, opera-se uma exceção.

                        É que os efeitos da tutela antecipatória, apesar da sentença que a ela sobreveio, subsistem independentemente da decisão definitiva, senão vejamos.

                        Ao se analisar as exceções previstas nos incisos do art. 520 do CPC, se percebe que somente a do inciso VII não se refere, propriamente, aos efeitos da sentença definitiva, mas aos de uma decisão interlocutória.

                        Em todas as demais hipóteses é a sentença que impede o recebimento da apelação no efeito suspensivo, enquanto que, na confirmação da antecipação de tutela, é a decisão interlocutória que a concedeu que impede seja suspenso o cumprimento da decisão.

                        A sentença de procedência, por si só, não produziria esse efeito.

                        Assim, mesmo que a sentença confirme a tutela antecipada, fazendo com que se receba a apelação apenas no efeito devolutivo, nos termos do inciso VII do art. 520 do CPC, o agravo de instrumento interposto, durante a instrução do processo, contra a decisão interlocutória, caso seja julgado procedente após a prolação da sentença, fará com que a apelação seja recebida no duplo efeito, devolutivo e suspensivo.

                        Não precisará o apelante, portanto, interpor agravo requerendo ao relator a suspensão da decisão nos termos do § 4º, parte final, do art. 523, c/c art. 558, caput, e parágrafo único, ambos do CPC, onde, neste, terá que comprovar, mediante relevante fundamentação, lesão grave e de difícil reparação.

                        Somente se aquele primeiro agravo for julgado improcedente, é que deverá o apelante lançar mão dessa segunda possibilidade de suspender a execução provisória iniciada com a antecipação de tutela.

                        Saliente-se que a fundamentação pela qual o agravante deve comprovar o perigo de dano irreparável, conforme exige o art. 558 do CPC, não deve atacar os fundamentos da decisão interlocutória que concedeu a antecipação de tutela, pois preclusa a oportunidade para fazê-lo, tampouco os fundamentos da decisão definitiva, pois objeto da apelação.

                        Há, contudo, uma exceção: quando a antecipação de tutela seja concedida na própria sentença, e não, apenas, confirmada.

                        Neste caso, embora o agravo seja interposto após a sentença, poderá atacar tanto a decisão que concedeu a antecipação, da mesma forma que faria no curso do processo, hipótese em que poderia, tão-somente, demonstrar que os requisitos do art. 273 do CPC não foram preenchidos, bem como comprovar, mediante a relevante fundamentação exigida no art. 558 do CPC, perigo de dano irreparável com a execução da sentença.

                        A jurisprudência, todavia, não vem interpretando dessa forma, conforme se extrai do acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “A apelação é o recurso cabível para atacar a antecipação de tutela concedida no bojo da sentença de mérito. Interposto agravo de instrumento, dele não se conhece” (Agravo de Instrumento n. 97.04.60173-5/SC. 6ª Turma. Data da decisão: 17.03.1998. Fonte DJ de 08.04.1998, p. 325, Relator Juiz Carlos Sobrinho).

                        Nesta decisão, contudo, foi vencido o Juiz João Surreaux Chagas, que conheceu do recurso, por entender que o efeito suspensivo da antecipação de tutela pode ser obtido através de agravo de instrumento.

                        A posição vencida é, evidentemente, a correta. Primeiro porque a antecipação de tutela possui efeitos diversos da sentença de mérito.

                        Enquanto em todas as hipóteses elencadas nos incisos do art. 520 do CPC é a própria decisão definitiva que permite a execução da sentença, na confirmação da antecipação dos efeitos da tutela é a decisão interlocutória, anteriormente proferida, e, após confirmada, que permite a execução, e não a sentença que julga o pedido procedente, em si mesma.

                        Assim, deve se oportunizar ao réu que ataque os fundamentos que a justificaram, da mesma forma que faria antes da prolação da sentença.

                        Em segundo lugar, porque sendo a sentença recebida apenas no efeito devolutivo, em virtude de confirmação de antecipação de tutela, consistindo numa decisão relativa aos efeitos em que a apelação, permite que dela o vencido na demanda interponha agravo de instrumento (§ 4º, in fine, do art. 523 c/c o art. 558, parágrafo único, ambos do CPC).

                        De todo o exposto, não como se admitir seja julgado prejudicado o julgamento de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que concede a antecipação de tutela, quando sobrevenha decisão definitiva confirmando-a, pois ao réu sobrará, a fim de suspender a execução da decisão, somente a previsão do art. 558, caput, do CPC, que transfere para ele o ônus de comprovar o perigo de dano, enquanto que o agravo julgado prejudicado poderia analisar, apenas, se os requisitos da antecipação de tutela estavam preenchidos quando de sua concessão.

 

REFERÊNCIAS

 

BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de processo civil, v.2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000a.

 

______. Curso de processo civil, v.3. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2000b.

 

LOPES, João Batista. Tutela antecipada no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2001.

 

MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança e ação popular. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.

 

ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. São Paulo: Saraiva, 1997.

AÇÃO EXECUTIVA STRICTO SENSU

Guilherme de Almeira Bossle
Especialista em Direito e Processo do Trabalho
Professor de Direito Processual Civil da UNISUL
Advogado

                   1. Com a Lei n°. 11.232, de 22 de dezembro de 2005, o legislador eliminou a autonomia do processo de execução de sentenças, porquanto estabeleceu que, doravante, também a execução das sentenças que condenam o devedor ao pagamento de determinada quantia deve ocorrer na mesma relação processual de conhecimento.

                   Em princípio, poderíamos dizer que se trata da última etapa de uma série de reformas estruturais no Código de Processo Civil, iniciadas em 1994, com a Lei n°. 8.952, que introduziu, no seio do procedimento ordinário, uma medida liminar antecipatória (art. 273) e a tutela específica do art. 461. Para que possamos afirmar, no entanto, se o legislador, de fato, encerrou um “ciclo” de reformas estruturais em nosso Código ou se, ao contrário, há possibilidade de avançarmos um último e definitivo passo, é essencial que tenhamos “perspectiva histórica”, pois somente assim poderemos compreender adequadamente o sentido dessas reformas.

                   Isso porque o legislador, embora tangido mais pelas contingências da prática do que por uma elaboração teórica consistente[1], buscou libertar nosso processo do modelo procedimental da actio privada romana (ordo iudiciorum privatorum), com seu consectário lógico, a condemnatio, modelo este que os sistemas processuais modernos de herança romano-canônica universalizaram a todas as pretensões de direito material.

                   2. Devemos ter presente, desde já, que a universalização do esquema da actio privada não seria possível se, antes, não houvesse um “alargamento” do conceito da primitiva obligatio, cuja estrutura assumiu, no direito moderno, o domínio absoluto dos direitos, pretensões e ações de direito material[2]. Basta observarmos a lição de Chiovenda, quando diz que todos os direitos, independentemente da natureza da relação jurídica de que se originam, real ou pessoal, “no momento em que se fazem valer no processo dirigem-se a determinada pessoa, que no processo assume a posição de réu” [3], ou seja, para Chiovenda, no “limiar do processo”, direitos reais e pessoais se “equiparam” como direitos à prestação.

                   Esse entendimento também foi seguido por Liebman, para quem “não é obrigação só aquela que nasce da relação obrigacional”, pois também o direito real, em caso de lesão, “faz surgir para aquele que o lesou ou para outrem (p.ex.: o possuidor) obrigação pessoal e determinada de repor as coisas no estado primitivo” [4]. Logo, o titular do domínio não teria mais uma pretensão genérica e indeterminada à omissão, dirigida a toda sociedade, mas uma pretensão, pessoal e determinada, contra o usurpador da posse, que passaria a ser “devedor” de uma “prestação”, o que, segundo Ovídio Baptista, significa reconhecermos que “da usurpação teria milagrosamente nascido uma relação obrigacional entre o titular do domínio e o usurpador” [5].

                   3. Com efeito, as recentes reformas no processo civil brasileiro visaram à superação da sentença condenatória (condemnatio), uma vez que esta se manteve fiel à incoercibilidade da obligatio primitiva, o que a reduziu a uma mera exortação ao devedor para que cumpra espontaneamente a obrigação reconhecida na sentença (art. 580, parágrafo único, do CPC). Como veremos adiante, o direito moderno limitou-se a acrescentar à estrutura da obligatio romana, “como uma alternativa contra a resistência – resistência que o direito se não considera legítima, ao menos pressupõe e tolera – a execução forçada sobre seu patrimônio, no caso de o condenado não cumprir espontaneamente a obrigação” [6].

                   4. As sentenças que tenham por objeto o cumprimento de obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa não se destinam mais a produzir “condenação”, no sentido de exortar o devedor da obrigação reconhecida na sentença a cumpri-la espontaneamente, o que se constitui na marca essencial da condemnatio. Nessas sentenças, o juiz concede a tutela específica da obrigação (arts. 461 e 461-A do CPC), de modo que esses provimentos produzem, desde logo, execuções reais (lato sensu) ou mandamentalidade, superando o esquema de que toda actio, fundada numa obligatio, deveria produzir, necessariamente, uma condemnatio[7]. Enfim, essas sentenças não são, como antes, condenatórias, mas executivas lato sensu ou mandamentais.

                   Relativamente à sentença que tenha por objeto o pagamento de quantia certa, embora se cumpra na própria relação processual em que houve a atividade cognitiva – tal qual as tutelas específicas dos arts. 461 e 461-A do CPC –, continuaria ela a produzir uma condemnatio, haja vista se tratar de execução por créditos. Em outras palavras, nos casos de obrigação de pagar quantia, a doutrina sustenta a preservação da sentença condenatória em razão da necessidade de modificação da “linha discriminativa” que, após a sentença, ainda separa as esferas jurídicas do credor e do devedor, noção esta de que Pontes de Miranda se vale para diferenciar as execuções por créditos das execuções lato sensu.

                   5. Pontes de Miranda sustenta não ser correto limitar as sentenças executivas às execuções por créditos, como se toda execução tivesse como causa uma condenação pela falta de pagamento de alguma dívida. Em determinadas execuções, diz ele, não há o devedor, de direito das obrigações, constrangido a assistir e sofrer a execução forçada.

                   Pontes explica que, nas execuções por créditos, os bens estão na esfera jurídica do demandado em conformidade com o direito, isto é, os bens sobre os quais incidirá o ato executivo são de propriedade do devedor, mesmo após a sentença que o condenou, logo, estão legitimamente na sua esfera jurídica. A satisfação do crédito, portanto, ocorre pela modificação da linha discriminativa das duas esferas jurídicas, que se dá pela retirada do bem da esfera jurídica do réu condenado, transferindo-o para a esfera jurídica do credor vitorioso.

                   Já nas ações executivas lato sensu, continua Pontes, o autor pede que se apanhe e retire o bem – que agora está de maneira ilegítima na esfera jurídica do demandado – e se lhe entregue, ou seja, o bem que será objeto da execução, após a sentença, está “contrariamente a direito” em poder do demandado[8].

                   Daí porque, complementando a lição de Pontes, Ovídio Baptista diz que, nas sentenças condenatórias, o simples ato executivo – suficiente nas executivas lato sensu – transforma-se num processo de execução autônomo, porque, mesmo após a sentença, a pretensão do credor vitorioso ainda encontra obstáculo no “direito real do condenado”, a ser afastado para a definitiva satisfação do crédito[9].

                   Não cremos, todavia, ser possível afirmar que a preservação da sentença condenatória no processo civil brasileiro se deva à modificação da “linha discriminativa” das esferas jurídicas, necessária nas execuções por créditos, mesmo após a Lei n°. 11.232/2005, porquanto estaríamos a definir a sentença condenatória pelo seu efeito executivo, e não pelo seu conteúdo condenatório.

                   6. Segundo Ovídio, embora Pontes de Miranda tenha atingido o “ponto crucial” da distinção entre execuções por créditos e execuções reais, sua construção teórica acerca da existência das ações executivas e mandamentais foi “incapaz de sequer abalar a convicção, fruto de construção milenar, da existência das três ações apenas, como expressão exaustiva do fenômeno jurisdicional”, justamente porque o jurista não atentou para o fato de que à universalização da sentença condenatória no direito moderno correspondeu uma análoga generalização do “conceito de direito das obrigações, para toda e qualquer relação jurídica, como se todo o direito material correspondesse a uma relação de débito-crédito, pois esse é definitivamente o problema fundamental de que decorre a universalização das ações e sentenças condenatórias” [10].

                   Como já salientamos, ao reproduzir o modelo da actio privada romana, o direito moderno universalizou as ações e sentenças condenatórias a todas as pretensões de direito material, o que, para tanto, exigiu que direitos reais e pessoais, no dizer de Chiovenda, fossem equiparados, “no limiar do processo”, a direitos à prestação. Com isso, explica Ovídio, o direito processual acabou concedendo ao usurpador ou ladrão – que deve restituir o que não é seu – o mesmo tratamento dispensado ao devedor, que deve pagar com bens que lhe pertencem, vale dizer, o direito processual concedeu a sentença condenatória tanto contra o devedor que será executado para pagar com o que lhe pertence, como contra o usurpador, já declarado pela sentença possuidor ilegítimo do bem sobre o qual incidirá a atividade executória[11].

                   Ora, se todo direito, absoluto ou relativo, real ou pessoal, se apresenta como obrigação no momento do processo, na sua direção pessoal e determinada como direito à prestação, exatamente como sustenta Chiovenda[12], então é perfeitamente possível universalizar a sentença condenatória (condemnatio) “como expressão genérica de todas as pretensões de direito material, excluídas apenas as recentíssimas categorias de ações declaratórias e constitutivas” [13].

                   Por isso mesmo, entendemos que se ainda é possível falarmos em sentença condenatória no processo civil brasileiro, isto não se deve à necessidade, nas execuções por créditos, de modificação da “linha discriminativa” da esfera jurídica dos bens do devedor, até porque jamais se ousou questionar que a ação reivindicatória produzia uma sentença condenatória, não obstante a coisa, após a sentença, estar “contrariamente a direito” na esfera jurídica do usurpador “condenado”.

                   Como dissemos, incidiríamos no mesmo equívoco de quase todos os que buscaram definir a sentença condenatória, uma vez que estaríamos a defini-la pelos seus efeitos executivos, e não pela sua eficácia ou por seu conteúdo condenatório. O que, veremos, define a sentença condenatória é a sua incoercibilidade, ou melhor, a sua impotência para satisfazer a pretensão de direito material, servindo apenas de “passaporte” para a execução[14], irrelevante dar-se em processo autônomo ou na mesma relação processual de conhecimento.

                   7. Para que nossas proposições se tornem mais claras, devemos analisar a relação que, no direito romano primitivo, vinculava a condemnatio à obligatio por meio da actio, relação esta que os sistemas processuais modernos reproduziram fielmente. Antes, porém, devemos esclarecer que a conservação da estrutura da actio romana – geradora de sentenças condenatórias –, deve-se, antes de tudo, à assimilação, pelo direito moderno, do conceito de jurisdição dos últimos períodos do direito romano, como uma função meramente declaratória de direitos.

                   Essa afirmação exige, naturalmente, uma cuidadosa explicação, que, entretanto, o momento não nos permite. Por outro lado, é indispensável esclarecer, com a brevidade que as circunstâncias nos impõem, que, no primitivo direito romano, o processo civil contava com instrumentos bastante efetivos de tutela dos direitos, como os interditos, que eram outorgados pelo pretor como expressão de seu imperium.

                   Os interditos eram instrumentos de que emanavam ordens, não condenação, e “tinham aplicação no domínio do direito público, ou das relações jurídicas de natureza pública, sendo raro o emprego da tutela interdital em questões de direito privado, limitando-se a aplicação deles, nestes casos, particularmente à proteção possessória” [15]. Esses instrumentos, por motivos que não nos cabe agora investigar, foram inteiramente suprimidos do direito romano, o que determinou a universalização da actio privada, produtora, exclusivamente, de sentenças condenatórias, que não passam de formas simplesmente declaratórias de tutela processual[16].

                   Em última análise, no direito romano do período bizantino já havia sido suprimida a tutela interdital, que era aquela que continha, justamente, execução e ordem, raízes das modernas ações executivas e mandamentais. Assim, ao conservar o conceito romano de jurisdição, como juris dictio, o direito moderno, além de privar-se dos interditos, teve de conservar e universalizar a ação condenatória, com o arcaísmo decorrente da primitiva incoercibilidade da obligatio[17], que, a seguir, cuidaremos de investigar.

                   8. No primitivo direito romano, a actio privada dizia respeito, exclusivamente, às pretensões nascidas do direito das obrigações, de modo que toda actio tinha origem numa obligatio e produzia sempre uma condemnatio. Já os direitos reais eram tutelados pela vindicatio, que se constituía numa forma diversa de tutela judicial. Essa diferença de tratamento processual era determinada pelo direito material, mais precisamente pela diferença entre as duas pretensões – obligatio e vindicatio –, cabendo ao direito processual, tão-só, recebê-la como um dado prévio para a regulação instrumental[18].

                   A primitiva obligatio, ensina Ovídio Baptista, era uma vínculo de natureza privada que ligava (ob + ligatio) o credor ao devedor, e do qual o obrigado haveria de libertar-se por meio de um ato voluntário de prestação (oportere). Esse vinculum iuris era rigorosamente pessoal (não patrimonial) e juridicamente incoercível, incoercibilidade esta que determinava a natureza e função da condemnatio, a pressupor o espontâneo cumprimento da obrigação por parte do condenado. Ao contrário, portanto, do que acontece no direito moderno, em que a execução obrigacional é jurisdicional e incide sobre os bens do devedor, a execução obrigacional romana, decorrente da actio, era pessoal e exercida privadamente pelo credor vitorioso[19].

                   A condemnatio, por isso mesmo, significava apenas a procedência da actio, ou seja, em direito romano, a condenação opunha-se à absolvição, de modo que as sentenças eram absolutórias, quando a actio era declarada improcedente, ou condenatórias, quando o juiz a declarasse procedente (si paret condemna, si non paret absolve), caso em que o devedor resultava condenado e, como tal, sujeito à execução privada. O que, no entanto, é decisivo para o tema que nos ocupa é a “terminalidade” processual da condemnatio, porquanto era ela o ato pelo qual o juiz privado encerrava o procedimento da actio (ordo iudiciorum privatorum), enfim, com a sentença, absolutória ou condenatória, o juiz privado encerrava a função jurisdicional, pois a execução posterior era atividade privada, atribuída ao próprio credor vitorioso [20].

                   Com isso, podemos concluir que a jurisdição romana, decorrente do procedimento da actio, era meramente declaratória, sendo a condemnatio o ato pelo qual o juiz privado encerrava a função jurisdicional, exortando o devedor a cumprir, voluntariamente, a obrigação. Em não havendo o cumprimento voluntário, o devedor ficava submetido à fase executória, mas esta não mais era função jurisdicional, mas atividade exercida privadamente pelo autor vitorioso[21].

                   9. Os direitos reais, como dissemos, não eram tutelados pela actio, mas pela vindicatio. Isso porque, nas relações jurídicas de domínio, o alienante não prestava, positivamente, qualquer obrigação, ou seja, não havia uma “obrigação de entregar a coisa” a gravar o alienante. A transferência da propriedade ocorria por meio de uma atividade exercida pelo próprio adquirente (o credor de hoje), enquanto que o alienante (o nosso devedor) limitava-se a sofrer, passivamente, a tomada da posse por parte do adquirente[22].

                   Segundo Ovídio Baptista, o adquirente da coisa não tinha qualquer pretensão – no sentido de exigência de uma prestação – ante o alienante, que se limitava a tolerar, ou sofrer a ação do titular do direito, dirigida à satisfação de seu interesse[23]. Disso resulta que, na vindicatio romana, não havia uma “responsabilidade pessoal” do possuidor, correspondente a um “dever de restituir”, já que o usurpador não se obrigara absolutamente a nada, devendo apenas sofrer (patientia prestare) a vindicatio (manum conserere) do titular do domínio, que teve seu direito reconhecido pelo pretor.

                   O usurpador, acrescenta Ovídio, não era condenado a “entregar a coisa” – como ocorre no direito moderno –, mas recebia uma ordem, para que permitisse a tomada da posse por parte do proprietário. Logo, conclui o jurista, o conceito de pretensão, em sua direção pessoal e determinada, como exigência de uma prestação (oportere), não cabia aos direitos reais, mas ligava-se às ações pessoais, portanto à obligatio, pois se tivéssemos de conceber uma “pretensão” nos direitos reais, tal haveria de ter um conteúdo negativo, correspondente ao dever (não obrigação) de omissão, de respeito, ao direito real de outrem[24].

                   O direito romano primitivo, portanto, não obscurecia a clara diferença entre as duas pretensões, vale dizer, não dispensava ao usurpador, que terá de pagar com o que não é seu, o mesmo tratamento instrumental que dispensava ao devedor, que deve pagar com o que lhe pertence[25] (Digesto, 47, 2, 17: “Nossos escravos e nossos filhos podem certamente furtar-nos alguma coisa, mas não estão sujeitos à ação de furto, pois o que pode castigar o ladrão não tem necessidade de litigar com ele”).

                   Ocorre que, na evolução posterior do direito, iniciada ainda em direito romano, invertem-se os papéis dos sujeitos na relação contratual. Atualmente, o adquirente aguarda a realização do direito, cabendo ao devedor praticar a atividade (positiva) exigida para a sua satisfação. Essa transformação da estrutura da relação jurídica, assinala Ovídio Baptista, exerceu papel relevante para o “alargamento” do conceito de obrigação e para a correspondente universalização das ações e sentenças condenatórias, sendo decisiva para compreendermos a natureza condenatória que, modernamente, atribui-se à ação reivindicatória[26], melhor dizendo, para compreendermos a absorção da vindicatio pela actio.

                   10. O fenômeno da absorção das ações in rem pelas ações in personam dava-se pela litiscontestatio. Como sabemos, pela celebração da litiscontestatio entre as partes, o pretor romano encerrava a primeira fase (in iure) do procedimento do ordo iudiciorum privatorum e dava início à segunda fase (apud iudicem). A partir de então, as partes estavam sujeitas a um novo vinculum iuris, não mais determinado pelo direito material, mas de natureza processual. Assim, explica Ovídio, se alguém estivesse, originariamente, vinculado como devedor em virtude de um contrato de mútuo (obligatio), após a celebração da litiscontestatio, embora continuasse mutuário, não mais prestaria em virtude da obligatio originária, mas por ter se obrigado em juízo, dando-se um fenômeno análogo à novação.

                   A litiscontestatio, contudo, apenas “novava” a obligatio originária, jamais criava uma obligatio quando, antes, não havia qualquer relação obrigacional entre as partes, logo, era um fenômeno exclusivo do procedimento da actio privada (ordo iudiciorum privatorum), porquanto somente esta tinha origem numa obligatio[27].

                   Esse efeito “consuntivo” da litiscontestatio somente se tornou comum a todas as ações após a generalização do conceito de obrigação, uma vez que o processo, por si só, não tinha a virtude de transformar em obrigacional todos os direitos, quer dizer, como se, ao propor a ação in rem, uma “imaginária” litiscontestatio fizesse surgir uma “obrigação” de prestar, como devedor, a obrigação reconhecida na sentença, mesmo que antes da demanda nenhuma obrigação existisse entre as partes, caso em que o usurpador se tornaria devedor em virtude do processo. Por outro lado, a partir do momento em que a litiscontestatio tornou-se comum a todas as ações, imaginou-se que todo direito, real ou pessoal, que caísse no processo sofreria uma metamorfose, transformando-se numa relação obrigacional (Chiovenda), o que acabou sendo fundamental para a universalização da execução por créditos, tendo como pressuposto a sentença condenatória[28].

                   Como, entretanto, a litiscontestatio não criava uma obligatio quando antes não existisse um vínculo obrigacional, devemos apontar, mesmo que em apertada síntese, o fenômeno responsável pela generalização da obligatio romana, por meio do qual ela absorveu os interditos e a vindicatio, passando a assumir domínio absoluto dos direitos, pretensões e ações no direito moderno[29].

                   11. Pois bem. Originariamente, as relações obrigacionais tinham como fonte exclusiva o contrato e o delito (obligatio ex contractu e ex delicto). Ocorre, todavia, que esse esquematismo radical das fontes das obrigações não dava lugar a inúmeras situações intermediárias que foram surgindo à medida que a sociedade romana tornava-se mais complexa, como, v.g., os deveres e as obrigações propter rem[30].

                   Segundo Ovídio, “este descompasso entre os conceitos primitivos e as novas exigências impostas pela realidade foi a primeira armadilha, ou a primeira brecha, encontrada pelos juristas, para transformar a reivindicatória numa ação obrigacional, fazendo com que a vindicatio resultasse numa condemnatio[31]. Além disso, a própria supressão dos interditos já havia determinado que a posse fosse defendida por meio de uma actio (Digesto 43, 1, 1, 3: “Todos os interditos, mesmo quando pareçam redigidos como reais, em virtude de sua própria natureza são pessoais”).

                   Confusão análoga a que ocorreu com os interditos possessórios, salienta Ovídio, fez com que as verdadeiras ações reais fossem contaminadas por pretensões pessoais, como no caso da própria vindicatio, que era a ação adequada mesmo nas hipóteses em que a pretensão do proprietário se limitasse às perdas e danos pela deterioração da coisa, pretensão esta nitidamente pessoal.

                   Eis porque o jurista gaúcho insiste em afirmar que a ‘“aplicação monstruosa’, feita pelos juristas do período bizantino do conceito de obligatio seja o ‘elo perdido’, através do qual a actio romana primitiva, com seu consectário lógico – a condemnatio –, impôs-se definitivamente no direito moderno, dando-lhe irremediável caráter privado, tornando a sentença de condenação uma conquista quase romântica, de que o autor vitorioso nada mais poderá esperar a não ser a boa vontade do condenado em cumprir espontaneamente a condenação” [32].

                   Diante do clima de decadência cultural que se apoderou do Império Romano, somado à insuficiência do esquematismo da fonte das obrigações, completa Ovídio, era perfeitamente compreensível que os compiladores do período bizantino confundissem pretensões reais (vindicatio) e pretensões pessoais (obligatio). O que, no entanto, surpreende, diz ele, é o fato de que, embora nos seja possível comprovar os equívocos dos juristas do direito romano tardio, uma pesada herança cultural, formada ao longo do mundo moderno, sobretudo pelas filosofias racionalistas, impede que o direito processual, como ciência instrumental que deveria ser, liberte-se do erro[33].

                   Essa é razão pela qual sustentamos, no início de nossa exposição, que qualquer tentativa de análise acerca da natureza da atual sentença que, no processo civil brasileiro, tem por objeto o pagamento de determinada quantia não pode prescindir de uma “perspectiva histórica”, uma vez que a universalização da sentença condenatória no direito moderno tem como gênese a uniformização do direito material a uma relação obrigacional de débito e crédito, desde o período bizantino do direito romano.

                   12. Não obstante ter havido uma profunda modificação da estrutura da relação obrigacional, o direito moderno conservou a sentença condenatória com os “traços essenciais” da obligatio romana primitiva, mantendo-se fiel ao princípio de sua originária incoercibilidade, reduzindo a condenação a uma mera exortação ao condenado para que, espontaneamente, cumpra a obrigação reconhecida na sentença.

                   A conservação da condemnatio no direito moderno, como já salientamos, deve-se à assimilação do conceito romano de jurisdição, como uma atividade meramente declaratória de direitos. Como adverte Ovídio, “a categoria que se conhece como sentença condenatória somente poderá ser compreendida tendo-se presente a natureza do processo jurisdicional de pura cognição, sem execução que lhe seja interna, e que sirva de pressuposto, como antecedente lógico e sistemático, para um segundo processo de pura execução” [34], estabelecendo-se a essencial precedência da cognição ante a execução (nulla executio sine titulo).

                   Liebman nos dava uma noção da natureza meramente declaratória da sentença condenatória, nesta passagem: “Houve quem dissesse que na sentença condenatória se contém, além da declaração da existência do direito, a ordem ao devedor de cumprir a sua obrigação. Todavia, esta ordem já existe na lei, e o juiz, em todos os casos, não faz mais do que a declarar […] Não é função do juiz expedir ordens às partes e sim unicamente declarar qual é a situação existente entre elas segundo o direito vigente. Idêntico é, neste terreno, o conteúdo a sentença declaratória e da condenatória” [35].

                   A distinção entre sentença declaratória e sentença condenatória, segundo o jurista, se resumiria no fato de que esta última “tem força de título executório[36], o que lhe torna o “elo” a ligar o processo de conhecimento ao processo de execução.

                   Desta lição de Liebman, importa ressaltar a noção, em geral aceita pela doutrina, de que o “conteúdo” da sentença condenatória – como de toda sentença – reduz-se à mera declaração do direito (accertamento), vale dizer, a “ordem” jamais poderá estar no “conteúdo” da sentença (prius), sendo, quando muito, um de seus efeitos (posterius), sempre externos e subseqüentes ao ato jurisdicional. Deste aspecto, voltaremos a tratar adiante.

                   13. Ao esclarecer se cognição e execução constituem duas fases distintas de um único processo, ou dois processos separados e autônomos, Liebman defende a autonomia do processo de execução como uma fidelidade às fontes romanas. De acordo com o jurista italiano, a doutrina européia não duvidava em considerá-los autônomos, pois, em direito romano, a actio iudicati era ação que não diferia de todas as outras senão por ter como pressuposto a existência do iudicatum anteriormente proferido[37].

                   Para Ovídio Baptista, no entanto, a precedência da cognição à execução não explica, por si só, o fenômeno da autonomia da execução, tal como ela se universalizou no direito moderno. Segundo ele, a autonomia do processo de execução, longe de constituir-se num retorno às origens ou a uma intenção de fidelidade às fontes romanas, deve-se, antes de tudo, à necessidade de fundamentar a autonomia dos títulos cambiários. Isso porque, na medida em foram concebidos como negócio jurídico abstrato, a prescindir de investigação sobre o negócio causal – que, em circunstâncias normais, “alimentaria” o processo de conhecimento –, a doutrina deveria dar-lhes instrumento processual próprio, exclusivamente executivo, livrando-os do processo de conhecimento[38].

                   Para confirmar sua assertiva, o jurista menciona o exemplo do próprio direito brasileiro anterior ao Código de 1973, em que a execução das sentenças condenatórias não exigia uma demanda autônoma, sendo simplesmente uma fase terminal da relação processual de conhecimento, sendo possível concluir que a precedência da cognição ante a execução não implica, necessariamente, em processos distintos e autônomos[39].

                   Em direito romano, explica Ovídio Baptista, não havia um processo contendo, simultaneamente, conhecimento e execução, porquanto a jurisdição do procedimento da actio era meramente declaratória (juris dictio), vale dizer, não era dotada de “poderes de império”, de tal modo que a execução posterior era atividade privada, não mais jurisdicional. A condemnatio, portanto, não era dotada dessa “eficácia criadora do título executivo”, que o direito moderno acabou lhe atribuindo, sendo certo, no entanto, que os juristas romanos tinham plena consciência de que a atividade jurisdicional, melhor dizendo, a condemnatio, não era satisfativa do direto, mas apenas o “primeiro passo” para a sua realização[40].

                   É importante destacarmos que o próprio Liebman demonstrou que a simultaneidade de conhecimento e execução era uma característica que marcava o direito germânico medieval, mantida, embora sob novos princípios, pelo direito comum medieval, o que, para Ovídio, desmente a conclusão de que a autonomia do processo executivo seja um resultado lógico imutável[41].

                   Segundo Liebman, no direito comum medieval, duas mentalidades “entraram em choque” nas universalidades italianas: a romana, que exigia, depois da sentença condenatória, que se desse início à execução por meio de uma nova ação (actio iudicati); e a germânica, que permitia que se praticassem atos executivos e admitia só eventualmente e incidentalmente o exame imparcial dos contendores[42].

                   Os juristas da Idade Média, continua Liebman, conseguiram conciliar as duas correntes (romana e germânica), por meio da criação do instituto da execução aparelhada (executio parata), preservando, desse modo, o princípio da precedência da cognição ante a execução. Assim, proferida a sentença condenatória, era suficiente simples requerimento para que o juiz praticasse os atos executivos. A esse procedimento deu-se o nome de execução per officium judicis, visto que era um simples prosseguimento e complemento do ato de prolação da sentença: istud officium venit in consequentiam condemnationis. Isto, diz Liebman, significou atribuir à sentença condenatória “eficácia nova”, desconhecida em épocas anteriores, qual seja, a de ser, por si mesma, suficiente para permitir a execução, sem necessidade de uma nova ação (sententia habet paratam executionem) [43].

                   Em seguida, Liebman coloca o ponto que particularmente nos interessa, quando salienta que as novidades na Idade Média não pararam nessa “eficácia nova” atribuída à sentença condenatória. A conveniência de rápida realização de algumas categorias de créditos, explica o jurista, estava em descompasso com o moroso procedimento ordinário, sendo necessário que se desse aos instrumentos de dívida (instrumenta guarentigiata) a eficácia de execução aparelhada, equiparando-os, para os efeitos executivos, à sentença condenatória. O fato de esses instrumentos gozarem da mesma execução aparelhada, própria das sentenças condenatórias, estaria a comprovar a autonomia do processo de execução, nem sempre dependente de um anterior processo cognitivo.

                   A partir dessas mesmas proposições, Ovídio Baptista sustenta que a fundamentação teórica para a autonomia do processo de execução – que teve como objetivo proporcionar aos instrumenta guarentigiata o processo correspondente – acabou justificando, de outra perspectiva, a autonomia da ação de execução de sentença condenatória[44].

                   Ora, tendo em vista que a condemnatio encerrava a função jurisdicional, tornou-se indispensável conceber a atividade executória – agora não mais privada, mas também jurisdicional – como formadora de uma segunda relação processual, ou seja, o procedimento ordinário (procedimento do ordo iudiciorum privatorum), “mesmo que não determinasse necessariamente a autonomia da execução da sentença, sugeria a formação de outro procedimento independente, para a veiculação da pretensão a executar”, daí a necessidade, assevera Ovídio, de dar à sentença condenatória, no mínimo, a mesma dignidade reconhecida pela ordem jurídica às cambiais[45].

                   Em síntese, a autonomia da execução de sentenças valeu-se do suporte dado pela “terminalidade” da condemnatio, pressuposta, naturalmente, a universalização da actio privada romana, quando já haviam suprimidas todas as formas de tutela interdital, na qual a atividade executiva integra a própria demanda de conhecimento[46].

                   14. É fundamental, no entanto, que estejamos atentos à advertência de Ovídio Baptista, quando diz que estaríamos cometendo sério engano, caso imaginássemos que a separação radical entre cognição e execução, no direito moderno, se devesse, tão-somente, à necessidade de outorgar aos títulos negociais uma ação de execução sem prévio processo cognitivo. A influência das filosofias racionalistas dos séculos XVII e XVIII sobre o processo civil foi, segundo ele, mais decisiva para este resultado[47].

                   Essas filosofias, explica Ovídio, determinaram duas conseqüências decisivas e dominantes na ciência moderna do direito. A primeira delas foi o confinamento dos juristas no que passou a ser chamado “mundo jurídico”, completamente distanciado do cambiante “mundo social” que lhes cabia compreender e regular. A segunda conseqüência foi a separação entre moral e direito, resultado da filosofia kantiana, que alienou os juristas dos problemas sociais e políticos de seu tempo, contribuindo para mantê-los na servil condição de executores da lei do Estado. As teorias do direito moderno, portanto, nasceram permeadas por essas premissas filosóficas, de modo que acabaram “cimentando ainda mais profundamente a separação entre cognição e execução que, no fundo, corresponde à herança cartesiana da separação entre teoria e prática” [48].

                   Desde que influenciado por essas filosofias, o direito moderno assimilou como um dogma ou, como costuma dizer Ovídio, como um paradigma a precedência da cognição sobre a execução, traduzida na parêmia latina nulla executio sine titulo, que nada mais é do que a exigência da estrita submissão do juiz à lei, “já que dar-lhe poder de executar antes de julgar seria o mesmo que outorgar-lhe o direito de conceder tutela a quem, depois, a sentença reconhecesse não ter o tutelado direito ao que lhe fora antes concedido; o que, dizia Hobbes, sendo, no caso, justiça do juiz e não da lei seria por definição injusta; ou como diria depois Montesquieu, o juiz que concedesse uma medida executiva antes da declaração da certeza, expressa na sentença, de que o destinatário da tutela era de fato o titular do direito tutelado, tornar-se-ia, ipso facto, legislador, com ‘grave risco para a liberdade dos cidadãos’” [49].

                   Essa separação entre direito e fato, ou seja, o entendimento determinado pelas filosofias racionalistas de que o direito opera, exclusivamente, no mundo normativo, é fundamental para que possamos compreender a dificuldade da doutrina em reconhecer que as eventuais repercussões fáticas do ato jurisdicional não são meros efeitos fáticos, mas conteúdo do próprio ato, portanto repercussões jurídicas. Basta vermos que as únicas ações que a doutrina reconhece são aquelas que atuam exclusivamente no plano normativo, quais sejam, as ações declaratórias, constitutivas e condenatórias, desprezando aquelas que modificam, por si mesmas, a realidade empírica: as executivas ‘lato sensu’ e as mandamentais. Essa modificação, por atuar no “mundo dos fatos”, não seria jurídica, mas mero efeito de um ato jurisdicional[50].

                   Noutras palavras, a executividade e a mandamentalidade não seriam mais do que efeitos (posterius) de ações declaratórias, constitutivas e condenatórias, jamais “conteúdo” (prius) de um ato jurisdicional, tornando-se compreensíveis as razões pelas quais conhecimento e execução não poderiam formar uma unidade não apenas processual, mas fundamentalmente material, como ocorre com as ações executivas lato sensu e mandamentais. Enfim, apenas as ações declaratórias, constitutivas e condenatórias poderiam formar o chamado “Processo de Conhecimento”, pois somente nelas o juiz, ao prolatar a sentença, “cumpre e acaba o ofício jurisdicional”, tal qual dispunha o art. 463 do CPC, em sua redação originária.

                   15. No “Processo de Conhecimento”, diz Liebman, o pedido do autor – em qualquer uma das três ações que o formam (declaratórias, constitutivas ou condenatórias) – visa a uma decisão que julgue procedente a ação por ele proposta, para declarar qual a regra jurídica concreta que resolve o conflito entre as partes, melhor dizendo, declarar a situação entre as partes segundo o direito vigente: juris dictio. Já no “Processo de Execução”, as coisas, segundo ele, se apresentam diferente, porquanto o pedido do exeqüente visa a provocar as atividades necessárias à satisfação do seu direito[51].

                   Como é possível constatarmos, apenas o pedido formulado pelo autor na execução – “onde não cabe mais ao juiz julgar” (Liebman) – é dirigido à satisfação de seu interesse, o que significa dizer que somente o processo de execução seria capaz de satisfazer a pretensão, enquanto que o processo de conhecimento, destinado à realização da jurisdição, não seria satisfativo do direito do autor[52].

                   A constatação feita por Liebman, no sentido de que a sentença condenatória “contém” apenas declaração, portanto incapaz de satisfazer a pretensão do autor, é o primeiro indício, assinala Ovídio Baptista, de que não existe, no plano do direito material, “pretensão à condenação”, capaz de gerar uma ação (material) de condenação. A sentença condenatória não passaria, então, de uma “bela fantasia ideológica preservada pelo direito moderno, para ocultar a extrema debilidade da função jurisdicional” [53].

                   Como veremos a seguir, temos sentença condenatória, mas, em contrapartida, não temos uma correspondente ação (material) condenatória, quer dizer, a ação condenatória, diferentemente das outras quatro ações de direito material, é uma categoria verdadeiramente processual[54].

                   16. A elaboração de um conceito processual de “ação”, em substituição à ação de direito material, tornou manifesta a redução do fenômeno jurisdicional apenas ao momento declaratório do direito (juris dictio). É evidente, no entanto, que a função jurisdicional não se limita à mera “certificação” da existência do direito. O pronunciamento do juiz na sentença, quando compõe o litígio, “não passa de uma atividade-meio, apenas instrumental”. A verdadeira essência da função jurisdicional corresponde à realização do direito material que o Estado impediu que se fizesse pela via privada da auto-realização, ou seja, a partir do momento em que o Estado assumiu o monopólio da jurisdição, passou a praticar rigorosamente a mesma atividade que proibira ao particular[55].

                   Não houve, portanto, substituição da ação de direito material pela “ação” processual, mas, como explica Ovídio, uma duplicação de ações: uma dirigida pelo particular contra o Estado, qual seja, a “ação” processual, para que este, uma vez declarada a existência do direito, o realize coativamente; e outra dirigida pelo Estado contra o obrigado, e que corresponde à ação de direito material, com a diferença de que, proibida a autotutela, “a efetivação do direito se dá através da ação dos órgãos estatais” [56].

                   Em última análise, a ação de direito material é o exercício do próprio direito por ato de seu titular, independentemente de qualquer atividade voluntária do obrigado ou, como diz Ovídio, um “novo poder”, que surge depois que o exercício da pretensão se mostra infrutífero, e que corresponde à faculdade, inerente a todo direito, que tem seu titular de agir para sua realização[57].

                   Como, todavia, a doutrina dominante parte do pressuposto de que a “ação” processual substituiu a ação de direito material, a tarefa de classificar as ações e sentenças de procedência (ação de direito material) lhe é absolutamente estranha, pois se a jurisdição reduz-se ao momento declaratório do direito (“ação” processual), tudo o que venha depois da sentença de procedência não corresponde mais à função jurisdicional (prius), mas apenas às suas conseqüências (posterius) [58].

                   Podemos dizer, então, que a concepção do fenômeno jurisdicional como uma atividade meramente “declaratória de direitos” – a operar, tão-somente, no plano normativo, sem qualquer conseqüência no mundo dos fatos – reduziu a classificação das ações em declaratórias, constitutivas e condenatórias, como se todo o direito material se resumisse a essas três pretensões, pelo simples fato de serem ações em que a relação processual se encerra com a mera declaração do direito, sem execução no seu interior, sendo que, no caso da ação condenatória, a execução que eventualmente se seguir ocorre em relação processual distinta[59]. A doutrina, por isso mesmo, recusa-se a aceitar a existência de ações executivaslato sensu e mandamentais, limitando-se a reconhecer as três ações clássicas, consagrando, assim, a chamada classificação trinária das ações.

                   17. No processo civil brasileiro, é bastante conhecida a divergência estabelecida entre Pontes de Miranda e a quase integralidade dos processualistas, no que diz respeito exatamente ao reconhecimento, por Pontes, das ações executivas e mandamentais, o que lhe permitiu estabelecer a chamada classificação quinária das ações.

                   Ovídio Baptista é um dos raros juristas que aceitou os argumentos defendidos por Pontes de Miranda, em contraposição à doutrina tradicional, o que, todavia, não lhe impediu de reconhecer que Pontes não ofereceu uma “justificação científica convincente” de seu ponto de vista. Em verdade, explica Ovídio, não se chegou a estabelecer uma disputa de pontos de vista que se pudesse qualificar, apropriadamente, como uma controvérsia teórica, porquanto se, de um lado, Pontes não apresentou fundamentos teóricos capazes de invalidar as inúmeras objeções opostas à sua teoria, de outro, os processualistas em geral não se preocuparam em demonstrar, com um mínimo de racionalidade, as razões doutrinárias que justificariam a existência de apenas ações declaratórias, constitutivas e condenatórias[60].

                   Humberto Theodoro Jr., por exemplo, nega a existência das ações executivas ‘lato sensu’ e mandamentais, pois embora esteja consciente do fato de que são diferentes das condenatórias porque não apenas preparam a execução, mas, desde já, importam em comandos a serem cumpridos dentro do mesmo processo em que a sentença foi proferida, tal circunstância, segundo ele, seria uma mera “peculiaridade”, insuficiente “para criar sentenças essencialmente diversas, no plano processual, das três categorias clássicas”. Para Humberto, as ações executivas lato sensu e mandamentais “realizam a essência das condenatórias, isto é, declaram a situação jurídica dos litigantes e ordenam uma prestação de uma parte em favor da outra”, diferenciando-se das condenatórias apenas no que se refere ao procedimento da execução, e conclui dizendo que “o procedimento é que merece a classificação de executivo lato sensu ou mandamental” [61].

                   Esta lição de Humberto Theodoro Jr. apenas revela o quão contraditória é a doutrina que sustenta, pois se, como ele mesmo diz, é da essência das sentenças condenatórias declarar a situação jurídica dos litigantes, também é certo que nunca foi da natureza da sentença condenatória impor ordens para que o “condenado” cumpra a obrigação, conforme lição de Liebman, há pouco reproduzida[62].

                   18. As ações e sentenças de procedência devem ser classificadas segundo o seu conteúdo ou sua eficácia, que, naturalmente, corresponde à pretensão de direito material, vale dizer, não há como classificarmos as ações e sentenças de procedência sem termos em conta a pretensão de direito material deduzida pelo autor em sua petição inicial[63].

                   Pontes de Miranda ensina que a distinção entre as sentenças de procedência diz respeito à eficácia preponderante, pois a classificação das ações em cinco espécies – que, segundo ele, ligam-se às cinco pretensões de direito material – leva em consideração a “preponderância eficacial”, ou seja, na medida em que não existem “sentença puras”, a natureza de cada sentença será definida conforme tenha eficácia para produzir efeitos preponderantemente declaratórios, constitutivos, condenatórios, executivos ou mandamentais[64].

                   Em que pese estejamos a laborar com noções, até certo ponto, elementares, os processualistas brasileiros jamais se convenceram de que a ordem poderia integrar o conteúdo de uma sentença que, por exemplo, julga procedente a ação de mandado de segurança. Para a doutrina, a ordem seria um mero efeito da sentença, não de uma sentença mandamental, pois sequer admitem a sua existência, mas de uma sentença condenatória, constitutiva ou, ainda, meramente declaratória (!). A mandamentalidade seria um posterius, cujo prius seria a sentença declaratória, constitutiva ou condenatória que reconhece o direito “líquido e certo” do impetrante. Em resumo, a ordem não seria o prius, mas, tão-somente, o posterius.

                   Como bem observa Ovídio Baptista, essa concepção de que a doutrina se vale para definir a mandamentalidade, a supor que a ordem não estaria no conteúdo da sentença, confirma o entendimento que predomina há séculos na ciência do processo, no sentido “de que o conteúdo do ato jurisdicional não deve conter ordem, não pode ser imperativo, posto que o juiz, como dissera Montesquieu, tem por missão exclusiva ‘pronunciar as palavras da lei’. Esta é afinal a proclamação de Liebman, ao dizer que não é função do juiz dar ordens às partes” [65].

                   A compreensão do equívoco cometido pela doutrina dominante torna-se possível desde o momento em que se tenha presente que “não haverá ação de mandado de segurança se a parte, em seu pedido inicial, não inserir a postulação de um mandado e a sentença não ordenar sua expedição”. A ordem, explica Ovídio, é o prius lógico para que se possa expedir o mandado, que, por sua vez, é o posterius de uma sentença que tem, em seu conteúdo, a ordem como prius[66].

                   De fato, é surpreendente que os processualistas continuem a insistir ser possível extrair um mandado (posterius) de sentenças declaratórias, constitutivas ou mesmo condenatórias, mesmo sendo incontroverso que essas três espécies de sentenças não têm, em seu conteúdo, qualquer ordem (prius) para que seja expedido um mandado. Embora nos pareça intuitivo que, ao julgar procedente a ação de mandado de segurança, o juiz haverá de ordenar que a autoridade coatora faça ou deixe de fazer alguma coisa, é preciso reconhecer que a doutrina dominante não se dá por vencida, sempre a buscar soluções engenhosas para fenômenos jurídicos insólitos, como é o caso da expedição de um mandado sem uma anterior ordem na sentença para que se possa expedi-lo.

                   Ora, o mandado somente será expedido se houver o verbo ordenar na sentença (ordeno), que corresponde à eficácia da sentença mandamental, e não o efeito mandamental de uma sentença declaratória, constitutiva ou condenatória. O efeito mandamental é, tão-só, a expedição do mandado. De todo modo, se mesmo assim quisermos saber se a ordem integra, ou não, o conteúdo da sentença que julga procedente a ação de mandado de segurança, ensina Ovídio, a solução é simples: basta retirar o verbo ordenar da sentença e verificar se ela, em si mesma, permanece incólume. Logicamente, essa sentença só é mandamental por conter a ordem em seu conteúdo[67].

                   Parece-nos absolutamente lógico que a expedição do mandado (efeito mandamental) somente é possível se houver uma ordem no conteúdo da sentença (eficácia mandamental), mas, no entanto, poderemos ter a ordem e, por qualquer motivo, não termos a expedição de um mandado, o que implica aceitarmos que a sentença “vive íntegra”, mesmo que o efeito mandamental jamais se produza.[68] A doutrina dominante, por outro lado, admite o mandado como efeito (posterius), sem a ordem, como causa (posterius), num singular “nexo de interdependência” entre causa e efeito[69].

                   19. Como dissemos, Pontes de Miranda classificava as ações de direito material – até porque, ao contrário do que os processualistas brasileiros imaginam, a “ação” processual não é passível de classificação – em cinco espécies (declaratórias, constitutivas, condenatórias, executivas lato sensu e mandamentais), conforme as respectivas pretensões de direito material.

                   Ocorre que não existe, no plano direito material, algo que se possa definir como “pretensão à condenação”, para que possamos afirmar que há uma correspondente ação de condenação. No plano do direito material, o credor tem, por exemplo, pretensão de receber o pagamento de uma determinada quantia, mas não “pretensão à condenação” do devedor. Existe, portanto, sentença condenatória, por meio da qual o juiz encerra a relação processual, porém não existe a correspondente ação condenatória[70].

                   Para que nossas proposições sejam mais bem compreendidas, é necessário que tenhamos presente a distinção, estabelecida por Pontes, entre exercer pretensão e exercer ação, que nos ajudará a elucidar o equívoco por ele mesmo cometido, quando elencou a condenatória como sendo uma ação de direito material.

                   Segundo Pontes, em regra, “a pretensão contém a ação, que é exigência + atividade para a satisfação. A ação não é só exigência: se digo ao vencedor que desejo que me pague o que me deve, exijo-o; porém, ainda não ajo contra ele: se lhe tomo a coisa, que me deve, ajo condenatoriamente, condeno e executo. Os dois atos só são hoje permitidos onde a lei especialmente os permite. A ação, depois que a justiça passou a ser monopólio, ficou separada da declaração, da constituição compulsória, da condenação, do mandato e da execução; estas, tornadas funções exclusivas do Estado, são objeto de prestação (jurisdicional), quando os titulares de ações, não mais podendo tutelar os seus próprios direitos, pretensões e ações, tiveram pretensão à tutela jurídica contra o Estado […] A pretensão contém exigir; a ação, além de exigir (ex-igere), que é premir para que outrem aja, leva consigo o agere do que pretende: ação sua; e não de outrem, premido. Quem age é ágil; quem cumpre o que deve é exato. Cumprir é exação; exigir é ‘premir’ a exação” [71].

                   Exercer pretensão, de acordo com a lição de Pontes de Miranda, é exigir o cumprimento da prestação. Enquanto o titular do direito apenas exige a prestação, ainda depende do cumprimento voluntário por parte da obrigado, confiando em que ele, espontaneamente, satisfaça a pretensão. Do exercício infrutífero da pretensão, nasce ação ao titular do direito, quando então não se limita mais a exigir, mas passa a realizar atividade para a satisfação do direito (agir materialmente), atividade esta que se tornou monopólio estatal.

                   Enquanto o titular do direito apenas exigir a satisfação da pretensão, em verdade ele ainda não age, pois a marca que distingue o mero exigir (exercer pretensão) do agir (exercer ação) é a dependência de um comportamento voluntário do devedor para a satisfação do direito. Disso, podemos concluir que, no plano do direito material, não haverá lugar para que o titular do direito exija do obrigado um comportamento que se possa identificar como o exercício ou o resultado de uma condenação[72].

                   Tomemos, como exemplo, um contrato de mútuo, em que o sujeito (credor) empresta determinada quantia em dinheiro a outrem (devedor), que se obriga a pagá-la num prazo previamente estabelecido. Após o vencimento da dívida, o credor poderá “exercer pretensão”, exigindo do devedor que satisfaça a obrigação, naturalmente pagando-lhe o que deve. Ora, diante da recusa do devedor em satisfazer a pretensão do credor, deveria nascer a este a respectiva ação (de direito material), dirigida à realização de sua pretensão, isto é, o “agir material” por meio do qual iria obter o pagamento da quantia, independentemente da vontade do devedor.

                   A ação material, portanto, deve guardar relação com a pretensão material do credor, de modo que, por meio dela – e só dela, de nenhuma outra ação – o credor possa obter o pagamento da quantia, independentemente de qualquer comportamento voluntário do devedor. A “ação” de cobrança, todavia, não é verdadeiramente ação de direito material, mas puro exercício de pretensão, pois, como esclarece Ovídio Baptista, “a satisfação da pretensão ainda depende do cumprimento voluntário do condenado (art. 580 e seu parágrafo único do CPC). Para uma ação de cobrança – atividade realizadora dessa pretensão, sem que se aguarde cumprimento voluntário do devedor – a sentença condenatória nada mais é do que exercício de pretensão. O credor estará, depois dela, como estaria se tivesse apenas exigido o pagamento” [73].

                   Nesse aspecto, Ovídio Baptista observa que, tendo em vista a segurança com que Pontes de Miranda distinguiu o “exercício da pretensão” do “exercício da ação”, era de se esperar que o jurista não admitisse a existência da ação condenatória, porquanto o credor vitorioso ainda dependerá de um ato voluntário de cumprimento, justamente o que distingue o mero exigir do agir.

                   A realização da pretensão, nas condenatórias, ainda depende de uma outra ação, qual seja, a ação de execução, esta sim, realizadora da pretensão, mas também ela incapaz de, por si só, realizar a pretensão, salvo no caso dos títulos executivos extrajudiciais. Diante disso, indaga Ovídio: que ação (de direito material) poderia chegar ao surpreendente resultado de ‘produzir’ outra ação?! Porventura, diz ele, isto não será prova cabal de não ser a condenatória uma ação verdadeira? O que produz ação (de direito material) é sempre a pretensão, daí porque a ação condenatória é mero exercício jurisdicionalizado de pretensão, pois o estado de condenado ainda coloca o devedor na condição de poder cumprir voluntariamente a obrigação[74]. Logo, a sentença condenatória – e isto exatamente que a define – é sempre incoercível, ou seja, incapaz de satisfazer a pretensão material, servindo, apenas, como “passaporte” para a ação de execução[75].

                   Esse foi o lamentável resultado a que o direito moderno chegou, ao conservar a sentença condenatória com os traços essenciais da obligatio romana, com sua originária incoercibilidade, reduzindo a condenação a uma mera proclamação da existência do direito e na decorrente exortação dirigida ao condenado, conclamando a que cumpra, espontaneamente, a obrigação reconhecida na sentença.

                   20. Chegados a este ponto, estamos em condições de estabelecer a correta classificação das ações, segundo os mesmos critérios adotados por Pontes de Miranda, que, todavia, as classificava em cinco espécies, porque se ligariam às cinco pretensões de direito material. Como não existe “pretensão à condenação”, devemos negar a existência das ações condenatórias, mais para assegurar a coerência lógica da classificação de Pontes, ressalva Ovídio, do que para dele divergir[76].

                   A classificação, portanto, não é trinária, nem quinária, mas quaternária, contemplando apenas as ações declaratórias, constitutivas, executivas lato sensu e mandamentais, excluídas as “ações” condenatórias.

                   Como é possível percebermos, a pretensão material à satisfação de um crédito, ao contrário das outra quatro pretensões, não conta com uma única ação, mas antes depende de duas ações para poder realizar-se, daí o caráter de sentença parcial atribuído por Ovídio Baptista à sentença condenatória, resultado da preservação, pelo direito moderno, da incoercibilidade da condemnatio.

                   Por isso mesmo, indagamos: com a recente modificação produzida pela Lei n°. 11.232, seria possível afirmar que, doravante, a sentença que tenha por objeto o pagamento de quantia possui uma correspondente ação de direito material, já que o seu cumprimento não mais depende da propositura de uma nova ação de execução? Embora o nosso entendimento seja o de que isto é perfeitamente possível, como demonstraremos logo a seguir, o processo civil brasileiro ainda insiste em preservar a sentença condenatória.

                   Desde que analisemos atentamente a redação do art. 475-J do CPC, veremos que se o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o credor vitorioso deverá requerer a expedição do mandado de penhora e avaliação, donde se conclui que a “ordem” para a expedição do mandado não está no “conteúdo” da sentença. Essa sentença, portanto, não possui eficácia executiva capaz de torná-la auto-exeqüível e, por si só, satisfazer a pretensão material do credor.

                   Isso se confirma pelo próprio teor do § 5° do mesmo artigo, segundo o qual, não sendo requerida a execução em seis meses, o juiz mandará arquivar os autos. Logo, a atual sentença que, no processo civil brasileiro, tenha por objeto o pagamento de quantia preserva a essência da condemnatio, quer dizer, continua sendo uma mera exortação para que o devedor, espontaneamente, cumpra a obrigação. Essa sentença não contém “atos de império”, muito embora a “multa” no percentual de dez por cento, para o caso de não ocorrer o cumprimento espontâneo, possa conduzir a um equivocado entendimento nesse sentido.

                   Ora, se o cumprimento da sentença ainda depende de provocação do credor vitorioso – pouco importando se por meio de demanda autônoma ou mero requerimento –, isso é prova suficiente de que a sentença não possui, em seu “conteúdo”, a ordem necessária à expedição do mandado de penhora e avaliação, mantendo-se o Código fiel a Liebman, que dizia não ser “função do juiz expedir ordens às partes”.

                   Embora tenhamos avançado de maneira significativa nas reformas do processo civil, ainda não conseguimos nos libertar dos traços essências da obligatio romana, mantendo-nos fiéis ao princípio de sua originária incoercibilidade, como se infere da redação do § 5° do art. 475-J do CPC.

                   21. Poderíamos – e ainda podemos – avançar mais nas reformas, eliminando, definitivamente, a sentença condenatória do processo civil brasileiro. Isso significaria ir além de um mero sincretismo procedimental, como o que se deu com a Lei n°. 11.232/2005, mas estabelecer um verdadeiro sincretismo material entre conhecimento e execução por créditos, que seriam praticados numa única ação, à semelhança do que ocorre com as ações executivas lato sensu.

                   Nessa hipótese, a pretensão deduzida pelo autor em sua petição inicial não seria mais pela “condenação do devedor ao pagamento de determinada quantia”, pretensão esta que não existe no plano do direito material, sendo antes uma criação do processo. O autor deduziria, desde logo, a pretensão de direito material, formulando pedido para a “expedição do mandado de penhora e avaliação”, indicando, se possível, os bens do réu que estariam sujeitos à penhora, cujo desembaraço poderia, eventualmente, se transformar em questão incidente. A “ordem” para a expedição do mandado estaria, naturalmente, no “conteúdo” da sentença, como resposta jurisdicional ao pedido formulado pelo autor, não havendo que se falar em requerimento para dar-se início à execução, muito menos em execução per officium judicis.

                   Ora, na medida em que o “conteúdo” da sentença de procedência deve guardar relação com a pretensão de direito material deduzida pelo autor na inicial[77], então é possível concluirmos que se o autor não mais deduz “pretensão à condenação”, mas a própria pretensão material de obter o pagamento da quantia, formulando pedido para “expedição do mandado de penhora e avaliação”, então a respectiva sentença de procedência deverá ter em seu “conteúdo”, necessariamente, a ordem para expedição do mandado (!).

                   Essa sentença seria, portanto, executiva, porque auto-exeqüível, tal qual as executivas lato sensu, com a diferença de que, nestas, basta o mero ato executivo para a satisfação do direito do autor, já que os bens estão, após a sentença, ilegitimamente na esfera jurídica do demandado, enquanto que, naquelas, ainda há necessidade de modificação da linha discriminativa das duas esferas jurídicas.

                   A esta nova ação (de direito material) – que tornaria completa a classificação quinária de Pontes, de acordo com seus próprios critérios –, devemos chamá-la de executiva ‘stricto sensu’, porque pessoal, em contraposição às execuções reais, que acabaram sendo identificadas como execuções lato sensu.

                   A diferença entre as duas, por nós já apontada, pode ser extraída da lição de Pontes, para quem, “nas execuções reais, a posição do demandado é a de pessoa imediatamente interessada, passivamente, na execução: de algum modo a tem de tolerar. Nas ações executivas pessoais, a posição do demandado é a de quem sofre a execução, por sair do seu patrimônio o bem com que se satisfaz a pretensão oriunda do título executivo, extrajudicial ou judicial” [78].

                   Ovídio Baptista, por outro lado, prefere chamar as execuções lato sensu de execuções reais, o que, segundo ele, “guarda fidelidade à sua natureza e evita que se elabore um tipo de classificação em que elas seriam chamadas ações executivas lato sensu, por serem apenas aproximadamente executivas, reservando-se às execuções por créditos a condição de verdadeiras (stricto sensu) ações executivas” [79].

                   Em que pese a correção da lição de Ovídio, decidimos denominar essa nova ação que estamos a propor – diga-se de passagem, sem o privilégio do ineditismo[80] – de executiva stricto sensu, não, todavia, para sustentar que apenas estas seriam verdadeiramente executivas, mas apenas para contrapô-las às execuções que, embora não sendo formas lato sensu executivas, mas execuções reais, daquela forma se generalizou a designação no processo civil brasileiro.

                   22. Em derradeira análise, estamos a propor que avancemos um último e definitivo passo nas reformas estruturais iniciadas em 1994, de maneira a eliminar do processo civil brasileiro essa categoria processual a que se denomina sentença condenatória, proporcionando ao credor do Direito das Obrigações uma ação (de direito material), na qual possa deduzir, justamente, sua verdadeira pretensão material, por meio de pedido de expedição de mandado de penhora e avaliação, cuja “ordem”, para tanto, deverá estar no “conteúdo” da sentença, o que determinará a sua classificação não mais como mera sentença condenatória, mas como sentença executiva: ação executiva stricto sensu.

                   Com isso, estamos a propor que se estabeleça a verdadeira classificação quinária de ações e sentenças de procedência – sem, evidentemente, a ação condenatória, mas agora com essa “nova ação material” que o processo civil brasileiro contemplaria –, que passaria a ser da seguinte maneira: ações declaratórias, constitutivas, mandamentais, executivas stricto sensu (pessoais) e executivas lato sensu (reais). E, ao propormos essa “nova ação” ao direito processual brasileiro, queremos render nossas homenagens ao magistrado e advogado ilustre, mas sobretudo ao professor eminente, decano de todos nós.

 

Bibliografia

 

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THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, vol. I, 1999.



[1] Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, A sentença condenatória na Lei 11.232.

[2] Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 81.

[3] Instituições de Direito Processual Civil, p. 34.

[4] Processo de Execução, p. 07.

[5] Ovídio A. Baptista da Silva, Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 49.

[6] Op. cit., p. 57.

[7] Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, A sentença condenatória na Lei 11.232.

[8] Comentários ao Código de Processo Civil, tomo X, p. 495-496.

[9] Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 17.

[10] Op. cit., p. 14.

[11] Op. cit., p. 55-56.

[12] Instituições de Direito Processual Civil, p. 43.

[13] Ovídio A. Baptista da Silva, Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 46.

[14] Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, A ação condenatória como categoria processual, p. 247.

[15] Op. cit., p. 38.

[16] Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, Teoria geral do processo civil, p. 15-18.

[17] Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 78.

[18] Op. cit., p. 56.

[19] Op. cit., p. 50-52.

[20] Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, A sentença condenatória na Lei 11.232.

[21] Op. cit.

[22] Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, Teoria geral do processo civil, p. 12.

[23] Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 53.

[24] Op. cit., p. 65.

[25] Op. cit., p. 55-56.

[26] Op. cit., p. 53.

[27] Op. cit., p. 73-76.

[28] Op. cit., p. 69-70.

[29] Op. cit., p. 81.

[30] Op. cit., p. 86.

[31] Op. cit., p. 86.

[32] Op. cit., p. 80.

[33] Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 89.

[34] Op. cit., p. 146-147.

[35] Processo de execução, p. 15.

[36] Op. cit., p. 20.

[37] Processo de execução, p. 44.

[38] Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 149.

[39] Op. cit., p. 149.

[40] Op. cit., p. 150-151.

[41] Op. cit., p. 150.

[42] No direito germânico medieval, a execução promovida pelo credor precedia a cognição, que era apenas um posterior e “ocasional” incidente provocado pelo devedor. Permitia-se a penhora privada ou extrajudicial, por aquele que se dizia credor, de modo que se o devedor entendesse que sofrera uma penhora arbitrária ou abusiva, ele é quem deveria, como autor, buscar a proteção jurisdicional (“ação” contrária). Isso significa dizer, primeiro, que a atividade executiva era anterior à fase cognitiva e, segundo, que o fenômeno cognitivo poderia nem mesmo ocorrer, desde que o devedor, que sofreu a execução privada, não provocasse o exercício da função jurisdicional (Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, Teoria geral do processo civil, p. 12).

[43] Processo de execução, p. 11-12.

[44] Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 152.

[45] Op. cit., p. 153.

[46] Ovídio A. Baptista da Silva, A sentença condenatória na Lei 11.232.

[47] Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 154.

[48] Op. cit., p. 155-157.

[49] Op. cit., p. 147.

[50] Ovídio A. Baptista da Silva, op. cit., p. 157-159.

[51] Processo de execução, p. 58-59.

[52] Ovídio A. Baptista da Silva, Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 159-160.

[53] Op. cit., p. 147.

[54] A ação condenatória como categoria processual, p. 233.

[55] Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de processo civil, v. 1, p. 84-86.

[56] Op. cit., p. 84-86.

[57] Op. cit., p. 81-82.

[58] Ovídio A. Baptista da Silva, Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 170-171.

[59] Op. cit., p. 33.

[60] Op. cit., p. 12.

[61] Curso de processo civil, v. I, 520.

[62] Processo de execução, p. 15.

[63] Ovídio A. Baptista da Silva, A sentença condenatória na Lei 11.232.

[64] Tratado das ações, p. 131-135.

[65] Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 41.

[66] Op. cit., p. 41.

[67] Curso de processo civil, v. 1, p. 492.

[68] Op. cit., p. 492.

[69] Ovídio A. Baptista da Silva, Execução “em face” do executado, p. 155-156.

[70] Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, A ação condenatória como categoria processual, p. 233.

[71] Tratado das ações, v. 1, p. 64-65.

[72] Ovídio A. Baptista da Silva, A ação condenatória como categoria processual, p. 233.

[73] Op. cit., p. 242.

[74] Op. cit., p. 248.

[75] Op. cit., p. 247.

[76] Op. cit., p. 242.

[77] Ovídio A. Baptista da Silva, A sentença condenatória na Lei 11.232.

[78] Comentários ao Código de Processo Civil, tomo IX, p. 51.

[79] A ação condenatória como categoria processual, p. 234.

[80] Op. cit., p. 251.

Empréstimo Compulsório: Noções Gerais. O Empréstimo Compulsório da Constituição Federal e do Código Nacional Tributário.

Marina Gondin Ramos
Especialista em Administração de Empresas
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
OAB/SC 31.599

Discorreremos no presente trabalho acerca do instituto do Empréstimo Compulsório. Inicialmente analisaremos o conceito desse. Segundo o Dicionário de Direito Constitucional:

Trata-se de tributo pela qual o Estado impõe ao contribuinte o empréstimo de certa quantia em dinheiro ao Poder Público e cuja devolução é obrigatória em data estipulada pelo próprio poder. (BASTOS, p. 53, 1994)

Em seguida o próprio autor levanta a dúvida a respeito da natureza jurídica do Empréstimo Compulsório. Interessante destacar o conceito encontrado no Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional, que se abstém no uso da palavra tributo:

Instrumento fiscal que se caracteriza pela exigência coativa de prestação pecuniária, por parte do Estado, condicionada à restituição do valor recolhido, em um momento posterior. (DIMOULIS, p. 141, 2007)

Ele difere do Empréstimo Público por independer da vontade do indivíduo de contratar com o Estado: “os empréstimos compulsórios não se confundem com os empréstimos públicos, tendo estes natureza contratual e aqueles natureza tributária”. (OLIVEIRA, 2010). [1]

APANHADO HISTÓRICO

Em breve resgate histórico percebemos que o empréstimo compulsório tem duas origens obscuras, mas podemos identificá-lo na Primeira Guerra Mundial, nos países europeus, e no Brasil difundiu-se a partir da Segunda Guerra Mundial. Entretanto a falta de parâmetros legais favoreceu diversos abusos, e conforme aponta Hugo de Brito Machado, a função do instituto estava distorcida, sendo usado para “suprir as deficiências de seu [Governo Federal] caixa sem os controles atinentes ao poder de tributar” (MACHADO, 2007), além dos diversos casos de inadimplemento.

Das discussões a respeito dos limites e da natureza jurídica do referido instrumento fiscal surgiram diversas correntes doutrinárias que culminaram na edição da súmula 418 do STF, em 1964: “O Empréstimo Compulsório não é tributo, e sua arrecadação não está sujeita à exigência constitucional da prévia autorização orçamentária”.

Entretanto tal entendimento foi alterado em 1965 com a edição da Emenda Constitucional n. 18, que introduziu o seguinte texto: “Somente a União, em casos excepcionais definidos em lei complementar, poderá instituir empréstimo compulsório”. Os casos excepcionais foram definidos pelo Código Tributário Nacional, de 1966, em seu art. 15.

A Constituição Federal de 1967 manteve a mesma orientação, e a EC n. 1 de 1969 trouxe em sua redação nova polêmica, entendendo alguns doutrinadores que existiriam duas espécies de empréstimo compulsório, um de natureza tributária e um de natureza diversa. O STF, no julgamento do RE 111.954-3/PR, entendeu que não haviam duas figuras distintas.

NATUREZA JURÍDICA DO EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO

Na constituição em vigor podemos encontrar alusão ao empréstimo compulsório no art. 148 com a seguinte redação:

Art. 148 – A União, mediante lei complementar, poderá instituir Empréstimo Compulsório:

I – para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;

II – no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no Art. 150, III, (b).

Ainda existe o mesmo dilema a respeito da natureza jurídica do instituto. Grande parte da doutrina entende ser um tributo, e estar sujeito aos princípios tributárias, dentre eles, Sacha Calmon, Regis F. de Oliveira, Geraldo Ataliba, Paulo de Barros Carvalho. Alguns doutrinadores entretanto entendem não ser caso de tributo, como Hugo de Brito Machado, por não constituírem acréscimo ao patrimônio do Estado, já que é uma receita que deve ser devolvida:

Tendo-se em vista o conceito universal de tributo como receita, no sentido não apenas financeiro, mas econômico, o empréstimo compulsório não é tributo, pois não transfere riqueza do setor privado para o Estado. (MACHADO, 2010, p.73)

Dentre os argumentos por considerar o Empréstimo Compulsório tributos destacamos primeiramente que, a constituição federal, depois de alteração da E.C. n. 42, se refere, em seu artigo 150, §1, ao artigo148 como tributo [2].

Ademais Luiz Felipe Silveira Difini (2008, p.61) destaca que o conceito vigente em nosso ordenamento de tributo, especificamente no art. 3 do CTN, não inclui na definição a obrigatoriedade de não ser restituível. Lembramos também que a lei 4.320/64 considera receita pública inclusive os empréstimos, mesmo considerando que o valor não será definitivamente integrado aos cofres públicos.

Pacificado o entendimento de serem os empréstimos compulsórios tributos, aplicam-se a eles todas as regras constitucionais pertinentes à instituição e cobrança de tributos.

CARACTERÍSTICAS GERAIS

Discorreremos sobre os detalhes desse instituto.

É sustentado pelo art. 148 da CF, sendo detalhado no art. 15 do CTN. Importante lembrar que o inciso III do art. 15 do CTN foi revogado pela constituição de 1988, por não estar previsto no art. 148 desta.

Destacamos ser um tributo de competência exclusiva da união, não podendo estados e municípios instituí-lo. Deve ser instituído por lei complementar, e após a E. C. n. 32 ficou expressamente proibido instituí-lo por meio de Medida Provisória. Importante mencionar também que a Constituição não indica o fato gerador do tributo, apenas as situações em que poderá instituí-lo. O fato gerador será definido posteriormente por Lei Complementar.

A aplicação da receita arrecadada está vinculada a despesa que fundamentou sua instituição. Luiz Felipe S. Difini traz interessantes observações sobre o tema, destacando que eventuais descumprimentos a essa regra acarretam em desvio de finalidade, que é causa de responsabilização dos administradores, porém não invalida o empréstimo já instituído, a não ser que o desvio se dê quando da edição da própria lei que instituiu o Empréstimo Compulsório (DIFINI, 2008, p.67)

Das duas situações de sua implementação, quais sejam o inciso I “para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;” e inciso II “no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no Art. 150, III, (b).” do art. 148 da CF, temos que ao primeiro não se aplica o princípio da anterioridade, só sendo este aplicável ao segundo. Parta da doutrina entende pela incoerência de tal limitação, conforme sustenta Luiz Felipe S. Difini, pelo caráter urgente do investimento público: “Melhor reconhecer a evidente impropriedade e contradição da norma: o que é urgente não pode esperar o próximo exercício” (DIFINI, 2008, p. 66).

Entretanto autores como Hugo de Brito Machado e Paulo de Barros Carvalho possuem entendimento diverso:

Parece incoerente que, em se tratando de investimento público de caráter urgente, tenha de ser observado o princípio da anterioridade. Não há, todavia, tal incoerência. O investimento público de relevante interesse nacional pode exigir recursos a que somente em vários anos seria possível atender com os tributos existentes. Por isso, é possível a instituição de um empréstimo compulsório que funcionará como simples antecipação de arrecadação. (MACHADO, 2010, p. 72)

 

Pode parecer um contra-sentido aludir-se à urgência ou à relevância do interesse nacional e, concomitantemente, amarrar-se ao expediente a um termo inicial de eficácia. Todavia, a experiência brasileira, pródiga em abusos nesse delicado campo da esquematização jurídico-social, bem recomenda a cautela imposta. (CARVALHO, 2005, p. 32)

Segundo o art. 15 do CTN a lei que instituir o empréstimo compulsório deverá fixar o prazo e as condições para o seu resgate.

São esses os requisitos para a instituição do Empréstimo Compulsório no ordenamento vigente.

 

REFERÊNCIA

 

BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Manual de Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

DIMOULIS, Dimitri (Org.). Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

____________. Natureza jurídica do Empréstimo Compulsório. Revista Dialética de Direito Tributário. 147. ed. p. 68-80. São Paulo: Dialética, 2007.

OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 3. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2010.

 


[1]“A vontade do indivíduo de contratar com o Estado é fundamental para que se evitem discussões sobre o denominado empréstimo compulsório, que é tributo.”

[2]“A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I (…)”